Atropelamento e morte em um dia de chuva

Chovia… Era sábado, 15 de Outubro de 2011. Um vento frio entoava uma suave tristeza sobre o dia cinza, peculiar do mês de Outubro; em uma cidade que já compartilha desta cor. Por vezes nos falta ar.
Era notório o ruído da água batendo no asfalto, formando poças, e logo, sendo espalhada com o passar dos carros.
Também era notório o ruído da água caindo sob o meu guarda-chuva, tanto quanto se podia ouvi-la quando estalava nas telhas e telhados das proximidades do cruzamento de onde eu, plantado há um bom tempo, esperava para atravessar.
Houve um momento em que me abati, e de súbito cedi a melancolia que me acolheu, me envolvendo no cenário e clima daquele local, onde, até então, mesmo diante da ausência de segurança que me trouxe a amargura, eu não poderia imaginar o que aconteceria em poucos instantes.
Quando o carro que me atropelou, causando a minha morte, aproximava-se, como eu pude ouvir em alguns comentários momentos após o choque, pouco antes de morrer, ele vinha a cerca de Oitenta quilômetros por hora, e eu não pude nota-lo, pois chovia forte naquele instante, e para esconder-me o máximo possível, no intuito e instinto de evitar o enxágue, eu havia curvado o guarda-chuva até um pouco abaixo da altura dos meus ombros, naturalmente, inclinando-o para o lado de onde o vento trazia a chuva de forma mais intensa, o que ocasionou à minha falta de visão do ângulo necessário para ver o automóvel em seu percurso.
Em um momento de pura confusão ou distração, senti que podia atravessar, mas, só depois que dei cerca de quatro passos e senti o choque, notei que estava errado. Voei longe. Precisamente doze metros.
No instante em que meu corpo, após quebrar alguns ossos com a forte pancada, e rodopiar no ar por inúmeras vezes, atingindo o asfalto, ouvia-se alguns gritos, talvez meus, que alarmaram o ocorrido. Alguns carros que passavam por perto pararam por curiosidade ou compaixão, e os passageiros destes, juntaram-se a toda a multidão que se dirigia ao local de minha morte, misturando-se as pessoas que esperavam a meu lado no cruzamento, também no intuito de atravessar, e que de perto, prestigiaram toda a cena.
Todos rodeavam o meu corpo. Pude notar nos semblantes o terror.
Tamanho foi o estrondo causado pela pancada, que poucas pessoas, ao me verem agonizando e jorrando sangue pela boca, nariz e por diversos ferimentos aparentes, incluindo algumas fraturas expostas, que além do sangue mostravam a fragilidade do ser humano, acreditavam que eu ainda podia estar vivo. Durei poucos instantes após o ocorrido, mas a maneira com que morri foi chocante para aqueles que ali estavam e presenciaram cada detalhe.
No rolar no asfalto molhado, ralei quase todo o corpo, ensanguentando o pouco de roupa que resistiu a queda. Na ocasião de minha morte, eu vestia uma bermuda preta, surrada; um tênis branco com detalhes vermelhos, o mesmo que uso agora, e uma camiseta da banda Black Label Society, também da cor preta. Nada ficou intacto.
Ardia e queimava. A dor só não era maior que o sofrimento de se ver estatelado diante da morte.
Neste poucos instantes em que resisti, perdi e recobrei a consciência por diversas vezes.
Um senhor grisalho, de olhar sereno, no momento em que suas lágrimas fugiram aos olhos, pegou o telefone celular e chamou o resgate, ele pedia de maneira desconsolada para se apressarem, mas já era tarde, pois, nem por um milagre eu poderia ser salvo.
Do carro que me atropelou, saiu uma mulher de cerca de trinta anos; desesperada. A pobre mulher estava em completo estado de choque.
Eu tentei conforta-la, dizendo que a culpa era minha, pois me precipitei ao atravessar a rua, porém, neste momento eu já estava prestes a espirar, e minha voz não saia, estava mudo.
Em torno do meu corpo havia muita gente. Todos me olhavam e colocavam as mãos sobre a boca, sobre a cabeça, passavam-nas na testa, e lamentavam. Sofriam.
Uma cena terrível de se ver.
Quando eu comecei a estrebuchar, e a hemorragia interna jorrava litros e litros de sangue, principalmente pela minha boca, podia-se ouvir os lamentos e mugidos de desespero de todos em volta.
Eu pensava e refletia sobre muitas coisas neste momento.
Sempre ouvi dizer que no instante da morte passa-se uma vida diante dos olhos, e é verdade. Lembrei-me de toda a minha família, de todos amigos, e de todos os meus planos que ali, junto de minha alma se esvaíram. Todos os meus trinta e quatro anos tornaram-se um filme de curtíssima duração diante dos meus olhos.
Ouve um momento em que a dor sessara, e a minha respiração de ofegante tornou-se apenas uma leve palpitação. Eu enfraquecia. O meu corpo já não podia resistir as fraturas e ferimentos do atropelamento. Eu estava morrendo.
Tentei resistir. Queria pedir a alguém para avisar a minha família sobre o acidente, mas como disse antes: minha voz não saia.
O desespero e agonia das pessoas em volta era contagiante, e comecei a me desesperar. Percebi que morreria ali, naquele momento.
Tudo isso passou-se em poucos instantes. Um curto tempo entre a vida e a morte.
Por um pequeno descuido, estava eu, ali, jogado ao chão, coberto de sangue, morto.
Somos frágeis, e isso é certo. E nossas fragilidades são postas à prova de diversas maneiras.
Por vezes, tais provas duram por toda uma vida, para no fim de tudo, nos mostrar algo, ou, nos usar como um espelho para outras pessoas.
Como dizem: viemos ao mundo por um motivo. Uma missão.
Em outras vezes, as provas são aplicadas em pequenos fragmentos de tempo. Tudo é muito rápido. Como em um atropelamento.
O ser humano é distraído e falho, e isso também é certo. E nossa falhas são postas a mostra de diversas maneiras.
Por vezes, morrem pessoas, por conta de pequenas distrações, como não olhar para atravessar uma rua.
Mas… Não creio que os problemas da humanidade estejam somente envolvidos com a morte.
Como dizem: morrer é um alívio para quem não sabe viver. Dizem? ou eu que estou dizendo agora? Que seja.
Por pequenas distrações/falhas: esquecemos de dar bom dia para alguém que cruza o nosso caminho de manhã; esquecemos de agradecer pelo troco que recebemos do padeiro; esquecemos de acenar as mãos para alguém que nos ergueu as suas; esquecemos de dar um sorriso, um abraço, um beijo, ou, demonstrar um gesto de carinho para aqueles que moram dentro de nossas casas, ou que, vivem próximos, participando de perto de nossas vidas. Esquecemos de trocar a água do passarinho; de regar as plantas; de limpar a sujeira do cachorro; de observar a lua; de agradecer a beleza que as estrelas nos proporciona ao olhar. Esquecemos, ou alguns esquecem: de honrar com seus compromissos, e por vezes, esquecem de honrar o seu próprio nome; entre outros.
É uma pena, mas esta lista de esquecimentos e falhas humanas beira o infinito.
Existem possibilidades de cessar tais falhas?
Pois, mesmo as falhas, as quais, julgamos pequenas, deveriam ser extintas, afinal, falhas são falhas.
 É possível?
No instante em que aquela visão da morte passara diante de meus olhos, me roubando todo aquele momento, me atordoando diante daquela prova instantânea em que a vida me impôs, por sorte, suspendi o guarda-chuva, olhei para os dois lados, e permaneci na calçada. 
Não me recordo ao certo se sobrevivi ou ressuscitei… Ou ambos…
Existem pequenas coisas que podem mudar toda a direção de uma vida…
Olhar para os dois lados pode ser um bom começo…
Procurar entender o avesso de certas coisas e tentar ser uma pessoa melhor pode ser um outro bom começo…
Não espere pela morte para ressuscitar!

Autor Convidado: Ricardo Altava

2 comentários:

Meyre Lapido disse...

Muito bom!

Observar, ouvir, agradecer etc. etc.etc... São detalhes que fazem a grande diferença entre só morrer qdo chegar a hora ou apressar a morte por pura distração!

Lucimara Fernandes disse...

Ricardo!
Não me canso de ler e reler este texto... Excelente! Nem tenho muito a cometar... Ele, por si só, já diz tudo! Parabéns!!
Um grande abraço!