A vila encarniçada

Uma pequena vila encarniçada, poeirenta e descuidada; quase uma cova de defuntos vivos.
Ali se estapeiam e se embebedam por boa parte do tempo, e logo, se espreguiçam e descansam e voltam a se estapear e embebedar.
São nove as casinholas que formam esta vila, sendo moradores, cerca de trinta pessoas, algumas que não vale a escrita, e uma meia dúzia que caracteriza bem esta vila encarniçada.
Uma destas casinholas alimenta os vícios inerentes funcionando de dia como bar e a noite como centro espirita. Bebem de dia desiludidos e a noite Abençoados.
Niroca vende cachaça, e sua especialidade é empurrar a maldita pinga envelhecida com uma cobra assentada no fundo da garrafa, o que gera reboliço entre os bêbados e desenganados. A noite, ela veste-se de branco e o saravá come solto no fundo do quintal.
Seu marido Eugênio bebe junto dos fregueses e dança junto da roda, sua serventia para por ai.
Quem também se veste de branco é Pedro Pina, ex-crente, dispensado da igreja na mesma época que seu ex-patrão lhe concedeu as contas. Dança na roda por pura birra.
Bernardete, é ex-mulher de Pedro Pina, atual mulher de Assis, o Pastor Impostor, como o chamam na vila.
Zé Papelão, um xucro de boa essência, ganhou apelido por conta dum episódio num discurso politico feito na vila para compra de votos, que com receio de perder o prestigio e as promessas, não abandonou o palanque nem em suas extremas necessidades.
Não podemos desprezar Nandinha, a filha de Niroca e Eugênio Boa moça para todo rapaz. Toda noite, enquanto dançam na roda do saravá, ela que não se encaixa, roda entre os rapazes no fundo da vila.
Certa vez, enquanto Niroca despojava Pedro Pina aos tabefes, por conta de uma dívida custosa, Nandinha morrendo de pena do corno, se fez de complacente e acompanhou-o até sua casinhola. Lá, onde além da geladeira restava a cama, fez sarar toda dor dos tapas e a lembrança dos trocados.
Se não lhe bastasse os olhos azuis e as pernas torneadas, seus lábios frescos entreabertos e seu busto recheado davam claras evidencias de intenso prazer.
Pedro Pina, após a caridade de Nandinha, apaixonou-se. As lembranças de Bernardete rolando na cama de Assis já não incomodava.
Nandinha não correspondia a paixão de Pedro Pina, pois não lhe faltava pretendentes, e o que ela queria dos rapazes não era paixão. Como diziam as más-línguas: gostava de levar fumo.
Já Bernardete, que descarada corneou Pedro Pina, dando mais que o dízimo ao pastor, soube da paixão do ex-marido e esbravejou ao modo feminino. E sem bastar os xingamentos e difamação, pelos cabelos arrastou Nandinha pela vila, até onde encontrou Niroca e relatou a transa. Um furdúncio estava armado.
Niroca de tão desconsolada e descontrolada, estapeou ambas, e depois foi papear a seu modo com Pedro Pina, que parou no hospital.
Assis, quando soube do caso, esbravejou com Bernardete, por conta do ciúmes que esta sentiu do ex-marido, e levando pelo lado profissional, aumentou o valor do dízimo da cachorra, alegando que sem o aumento Deus não a perdoaria.
Num outro dia, na ausência de Niroca, Eugênio se embriagava sossegadamente quando chegou Zé Papelão.
— Tem ai um refresco?
Eugênio serviu Zé, e papearam.
— Como está a menina? E Pina, o que diz?
— Quer casar.
— Diacho… E a menina?
— Disse que não casa nem morta.
— Pior…Logo a barriga começa ganhar tento.
— Ela diz que o pai não é Pedro Pina.
— Como assim? Se não é de Pina…
— Diz que é filho de Deus, acho que não sabe de quem é.
— Diacho… Certeza Eugênio?
— É o que ela diz.
— Danou-se.
— O que te aporrinha?
— Eugênio, escuta só, em nome de nossa amizade, se for meu, me proponho a casar.
— Você também?
— Poucas vezes.
Assis dizia à Bernardete: — Tomara que seja de Pina.
Bernardete respondia: — Se for é bem feito!
Logo que a ausência do pai pesou nas contas de Niroca e Eugênio, Nandinha ficou contra a parede. — Menina! Diga logo quem foi! — Eu já disse! Meu filho é de Deus! — Se não diz eu pergunto aos orixás.
Dito e feito. No saravá daquela noite, Nandinha foi assunto.
Entre cânticos e rodas, flores e cachaça, meias palavras ao pé do ouvido, desembucha:
— Sabe Preto Véio… Aqui nesta casa que também é sua, estamos aporrinhados com Nandinha, que pegou barriga e não diz ou não sabe quem é o pai.
— Rum, rum… Xíiiii… — E pita seu cachimbo.
— Preto Véio… Precisamos descobrir quem é que vai arcar com a criança.
— Rum, rum… Preto Véio sabe das coisas, mas nem de tudo… Rum, rum… Então a danadinha subiu no cipó? Rum, rum… — e pita.
— No cipó de um matagal todo.
— Nesse caso, é fazer de conta que um bom moço é que é o pai, sabe? Faça boa escolha. Me entende? Rum, rum… Isso sim… Até a criança nascer, depois pela cara da criança descobre o pai.
— Ta querendo dizer para… Mas e se… Cê sabe bem o que diz?
— Eugênio? Cadê você homem de Deus? Ontem falei com Preto véio a respeito da menina. Ele me disse para escolher o pai do meu modo de pensar e ver.
— E você acha que a menina vai aceitar? Ela já disse que não casa nem morta.
— Não precisa casar ué! Só precisa de alguém para assumir.
— Só sei de dois maduros, mas são todos pé-rapados.
— Escuta aqui Zé Papelão! Mais tarde você dê um pulinho lá em minha casa, precisamos ter uma prosa.
— Pedro Pina? Já voltou do hospital? Mais tarde quero você lá em casa para uma prosa.
Zé Papelão chega assustado, senta, olha, tira o chapéu, meche nos cabelos, enxuga a testa com um lenço de pano. Pedro Pina, pede um copo, mata, homem bom olha com medo para megera, e senta.
— Vocês dois vão ser pai!
— Como assim nós dois? — Se assustam.
— Enquanto não sabemos quem é será os dois, e quando a criança nascer é só olhar na cara. Se nascer com cara de asno esmigalhado é de Zé Papelão.
— Diacho.
— Se for borocoxô, feito meio-homem é de Pina.
— Só ando entristecido, só isso.
Nasce a criança, um menino, olho preto esbugalhado, cabelo de rato, cara de joelho, chora, grita, mama, dorme, acorda, azul de tão preto, chora de novo, mama… Veste a roupa que ganhou do pai Papelão, brinca com o chocalho que ganhou do pai Pina.
— Niroca… O moleque não parece nada comigo! — Replicam.
— Nandinha minha filha, a criança é tição! Mais puxado para o azul.
— Ué! minha mãe! Como eu ia adivinhar a cor de Deus?
— O único tição desta vila é Assis! O pastor!
— Mãe! Ele não é o pai! Foi só uma ferramenta que Deus usou! Não é assim que eles dizem?

Autor Convidado: Ricardo Altava

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